quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Momento poético

Bom, hoje não estou afim de escrever sobre algo. Não irei divagar sobre algum assunto ou sobre algo que aconteceu comigo. Desta vez, vou deixar para os leitores um pouco mais de cultura. Algo que possa enriquecer mais a mente.

Então, escolhi um trecho de uma poesia de João Cabral de Melo Neto. Para quem não o conhece, Cabral de Melo Neto, nascido em Recife, Pernambuco, foi um dos principais poetas da literatura brasileira. Ganhou diversos prêmios como: Prêmio José de Anchieta, de poesia, do IV Centenário de São Paulo; Prêmio Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras; Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro e Prêmio da União Brasileira de Escritores, pelo livro "Crime na Calle Relator", além de conquistas internacionais.

Também ocupou a cadeira número 37 na Academia Brasileira de Letras e tem como sua principal obra "Morte e vida severina".

O poema que escolhi foi 'Os três mal-amados'. No trecho abaixo, deixo à vocês, as palavras de Joaquim.

"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés.  Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.


O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte."

Por ter a poesia, não terá trecho de música ao final do post. Entretanto, deixo o vídeo pelo qual conheci tal texto. A banda Cordel Fogo Encantado recitando parte desses versos durante o DVD 'MTV Apresenta Cordel Do Fogo Encantado'.

Nenhum comentário:

Postar um comentário